Minha amiga equatoriana, aquela que tem uma barraca de tapiocas a poucos metros do mar, apresentou-me àquele sujeito, sem que eu se o pedisse e sem dar-me tempo para negar-me a conhecer ao tipo, nem muito menos o de tentar explicar a ela do que eu sofro de algum tipo desse transtorno que chamam os especialistas de autismo: sempre tento estar só, e com a dureza que se requer como uma necessidade de sobrevivência. E sou um experiente isolador, tomo todas as precauções para que ninguém se me acerque, eu também não me aproximo a ninguém, sento-me em lugares onde ninguém mais possa fazê-lo, no canto exato, no sofá preciso, e, prometo-o com inteira humildade, não há em minha nem uma pitada de arrogância: trata-se mal de um ato de legítima defesa. Simplesmente as pessoas me perturbam, ainda mais quando são pequenas, e gritam, e saltam, e fazem barulho. Em resumidas contas, assim sou. Aquele homem o vi sentado na mesa, junto a uma mulher jovem, mas pouco bonita, sem dúvidas quanto a isso. Seus olhos não se centravam, era magra e usava uma dessas saias de evangélica que devem tampar os joelhos para que não entre em pecado. Isto, ainda que de fato não era religiosa, e se via ademais com o cabelo desordenado. O tipo era grisalho, bastante passado de quilos, com ademanes que eu considerei a vôo de pássaro como de concupiscente. Sei que não é produto de uma análise muito profunda, mas já primeiramente sua cara não me agradou.
- Esse é um livro de que? – disse.
- Um livro de contos – contestei.
- Ahhh... interessante, quem sabe se aproveitando esses contos talvez se poderia fazer uma adaptação para voltá-los uma obra de teatro.... Já os apresentaste na escola de teatro da Universidade Federal? Seria interessante, por que... Olha, eu escrevi várias obras de teatro e a Universidade Federal, digo, os professores da universidade, apresentam-nas de uma maneira muito entusiasta, especialmente em função a que minhas obras envolvem sempre uma crítica certeira ao sistema imperante nos dias de hoje, não só neste país como em todos os países, que a verdade volta ao homem um escravo do mercado e ao mercado um escravo do homem, e eu...
- Muito bem amigo... eu me vou andando... (Com aquele discurso que estava alinhavando, já tinha claro que o homem era um prego).
- Eu estou muito grato de tê-lo aqui hoje comigo, já que não é frequente encontrar um artista... és chileno? Ah. Muito linda tua terra, agrada-me muito, pois o teu país é muito organizado, disciplinado e trabalhador, que é o que nos faz falta a todos nós... sabes? Pois eu não vivo aqui na Praia do Francês, não, também vivo em Aracaju, eu vivo em Austrália, em Madri, em Nova York, e até em Insbrook se tu queres... eu sou um cidadão do mundo, especialmente em concordância com a mensagem de minhas obras, onde para mim os seres humanos só fazem parte tangencial... diria de maneira mais crua, mais brutalmente: são utilitários. Em todos meus textos, a grande protagonista de todos meus escritos não é o homem, é a natureza, rainha de todas as mães, que por verdadeiro vem sendo tão castigada pelo homem, incapaz de reagir com veemência ante tal quadro de devastação...
- (E agora como me desfaço deste prego, sem ficar mal com minha amiga equatoriana?) E eu lhe digo: - sim, vi a devastação em fotografias e filmagens, é indescritível... É uma pura merda. - Isso lhe disse com a esperança de que o palavrão o alertasse que estava frente a um grosseiro ignorante, mas o recurso não causou efeito e não teve caso.
- Eu, - prosseguiu - como artista plástico da nova ninhada de pintores realistas e contestatários, creio que em minhas obras consigo expressar de maneira contundente essa ferida ensangüentada da natureza, com cores vivas e objetivamente relacionados a este crime ambiental, pois como artista eu sinto o chamado... - Imagino que você é crítico... - comentei por comentar.
- Mas não é a expressão artística que mais cultivo, apesar que é um exercício que tombo em vários jornais e revistas. E o mesmo que júri de concursos, é um pouco ingrata essa função. Há autores que não aceitam a supremacia de um, os conhecimentos de que deve dispor, o critério exato para adular, para ignorar ou para incentivar... e depois, ressentidos com um, encontram-no na rua e não falta o que se rebaixa até o solo gritanto, "oi crítico filho da mãe", ou "para outra vez escreve você melhor, pela tal qual que te pariu"... Já sabes que as reações do vulgo são insólitas, inusitadas. Nós os artistas devemos dar um salto sobre a média e elevarmo-nos à ponta da pirâmide do pensamento, para que nossas obras escorram para as massas como o água que cai por uma fileira de pedras azuis para a vertente, pois isso somos... um pilar do saber... um eixo do conhecimento...
- Tá, tá, tá, por favor, Tchau – disse eu francamente desesperado, e quis dizer-lhe que tanta inteligência sua pôde-me cansar e prejudicar a jornada de trabalho. -Tchau, Leonardo da Vinci daqui do bairro, adeus, tonto importante – sussurrei.
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