Tem que ter sido às quatro da manhã quando nos encontraram. Pelo menos tiveram o bom senso de não nos levarem algemados. Recordo que era uma noite muito fria e a rua estava coberta por uma neblina muito espessa, assim que apenas se via os focos da iluminação pública, isso tão somente pude ver naqueles tensos momentos, por que tinham estacionado o carro em que nos levaria muito perto de nossa porta. Também levaram as provas de nosso delito, que eram uns panfletos a duas cores e uma pequena máquina que os imprimia. Não se deram o trabalho de levar os frascos de tinta nem os rascunhos de nosso trabalho.
Verdadeiramente o que sentíamos por ele era pura inveja, ainda que nos panfletos acusássemos ao Poeta Oficial do Estado - o burocráta oficializado poeta, de fazer uso de sofismas para deslumbrar os incautos com sua questionável intiligência. Por certo, ele era famoso e nós não (nós, respectivamente, éramos parias, uma vergonha familiar, uns pobres merdas).
Já no quartel-general dois dias após estarmos detidos, em conversa informal numa cela abarrotada de outros delinqüentes, nos levaram à sala-de-interrogatório para acusar-nos formalmente de conspirar contra a exemplar figura do Poeta Ofical. Nós queríamos fazer alguns reparos ao texto de acusação, más o oficial estava acostumado a ignorar as objeções e reclamos, resultando evidentimente que nem sequer escutava nossos argumentos. Em todo caso era o mesmo já que por certo não conseguiríamos reverter a situação o Poeta Oficial era o talentoso, e nós eramos os vagos.
O Poeta Oficial contava com toda a confiança do senhor presidente e também com a do senhor ministro. Nós, pelo contrário, andavamos sobrando por todas as partes e em geral éramos ignorados, se não repudiados pelos cidadãos exemplares. Invejávamos a posição de sumo pontífice das Artes que exercia o Poeta Oficial, e nos indignava a facilidade com que rejeitava nossos trabalhos e mais ainda as artimanhas que utilizava para enaltecer os seus. A sua era uma poesia de pedra, tirada a marteladas de um complexo dicionário, sem uma só gota de sangue, sem um só assomo de fome, sem uma pitada da dor moeda (trocaria dor / cor, digo em português), sem uma palavra infeliz.
De nada me serviu alegar que o Poeta não era outra coisa que um mestre complicador da linguagem, um exemplo de réptil para atuar nos labirintos do poder, em escolher amigos que só lhe fossem de utilidade e outros juízos de valores, injustos, segundo a maioria. Tudo isto nos sucedia e mais, muito mais, de modo que nos parecia lícito conspirar contra ele. Mas a realidade dizia outra coisa em verdade o senhor Juiz não esteve em nada de acordo com nossos argumentos e aplicou todo o rigor da lei contra nós, os vagos (com certeza em meu caso, se eu não ganhava bom dinheiro indicava obviamente que eu era um ser errante e despresível, uma vergonha familiar). Para nos defender até inventamos a falácia que toda obra de arte tem sua raiz na vagância mas não teve jeito. Ao meu amigo Luciano, que era escritor de crônicas de viagens, lhe foi imposto um ano de reclusão sem direitos, ao meu tio Ismael, que quando não estava afetado de depressões nervosas compunha canções folclócrias sentenciou-lhe a pena de um ano num remoto lugarejo já perto do Pólo Sul, a mim que não sabia fazer nada de nada e que francamente era o único desocupado, condenou-me a trabalhar por 25 anos na mesma escrivaninha de uma repartição pública.
Quando ouvi a notificação da minha condenação, pensei que ele esteve pensando em me fuzilar, apesar da simplicidade do meu delito, me ocorreu um pensamento - aquela gente estava acostumada a condenar à revelia, e que bem pôde confundir meu expediente com o de algum bandido, mas quando o Juiz me deu a possibilidade de ir-me do país para sempre, vi claramente o que me recusava a ver – No frigir dos ovos o que se havia conseguido era perpetuar a memória do Poeta de Pedra e dos demais compañeros afinal.
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